Autor: Daniel Passos Miraglia*
Introdução
Este artigo abordará um tema antigo na ciência econômica e que tem recebido crescente destaque na mídia recentemente. A chamada "Guerra Cambial" é hoje assunto de destaque nos principais centros de excelência e inteligência econômica do mundo inteiro. Desde meus primeiros passos no mundo do estudo dos mercados e da ciência econômica que procuro, dentro do possível, dar atualidade ao passado. Isso significa estudar o passado com a intenção de entender como aquelas antigas experiências e dinâmicas podem nos ajudar a desvendar alguns dos mistérios e desafios do presente. Com esta estrutura lógica, procuro resumir neste artigo meu entendimento sobre as origens do problema cambial e aponto possíveis perspectivas para esta questão tão complexa. Declaro desde já que pela definição de complexo, entendo algo que não tem uma solução pré-estabelecida, muito menos linear, cartesiana ou binária. Na realidade, quanto mais estudo o assunto, mais fica evidente que a solução de maior valor agregado para a economia mundial passa pela complexidade da elaboração de um novo sistema monetário internacional, possivelmente com a criação de uma moeda única de reserva de valor. Algo parecido com o que foi o padrão ouro, porém com adaptações deste regime aos mercados de câmbio e de capitais internacionais modernos.
Origens
Vale a pena começarmos por relembrar um pouco da história econômica das taxas de câmbio, dos padrões de troca internacional, da criação do FMI e a própria história das moedas. O FMI foi formalmente criado em fins de 1945 e concebido logo após o chamado acordo de Bretton Woods (1944). O objetivo do fundo era a estabilização das taxas de câmbio e a reconstrução do sistema monetário e de troca internacional no período pós-guerra. Os países fariam contribuições periódicas para este fundo e quando algum país entrasse em dificuldade poderia tomar dinheiro emprestado deste fundo a taxas mais baixas. O fundo tinha por objetivo fortalecer a cooperação monetária internacional, facilitar o comércio entre os países, assegurar a estabilidade dos mercados monetários internacionais, reduzir a pobreza global e promover o aumento do bem estar das populações dos países membros.
De 1819 até 1933, o mundo viveu formalmente sob o regime monetário internacional chamado de "Padrão Ouro". Neste sistema monetário não existiam taxas de câmbio entre as moedas, somente as taxas de câmbio entre a moeda de cada país e o ouro e todas as transações internacionais tinham que ser obrigatoriamente feitas em ouro. Além disto, toda vez que um país fosse superavitário no Balanço de Pagamentos (superávit comercial + de serviços e de capitais) entrava ouro neste país, e este era obrigado (pelo Padrão Ouro) a emitir moeda na mesma proporção do ouro que entrava. Esta emissão de moeda gerava inflação dentro do país superavitário e com isso tornava seus produtos mais caros para o resto do mundo. Naturalmente (por causa da inflação interna) este país passaria a exportar menos e importar mais (produtos, serviços e capitais), o que reduziria seus superávits no balanço de pagamentos. O "Padrão Ouro", portanto, criava uma dinâmica de equilíbrio natural no sistema monetário internacional e distribuía de forma mais suave e equilibrada a riqueza das nações.
Ao término da primeira guerra mundial existiam enormes desequilíbrios financeiros entre os diversos países do mundo, acarretando um aumento exagerado da volatilidade das moedas, inflações agudas em vários países da Europa e os primeiros rompimentos com o "Padrão Ouro". O período entre as duas grandes guerras foi um período de choque para o Padrão Ouro, vários países abandonaram a convertibilidade em ouro de suas moedas na tentativa de reativar e reconstruir suas economias de forma mais rápida.
Quando terminou a segunda guerra mundial, praticamente todos os países desenvolvidos estavam com as suas finanças internas destruídas e precisavam se reconstruir. O único país desenvolvido em situação privilegiada eram os EUA, superavitários na época, enquanto praticamente todo o resto do mundo era deficitário. A guerra ocorreu em terras europeias, longe dos Estados Unidos da América. Os EUA e a Inglaterra, grandes vencedores da guerra, decidiram então assumir a reponsabilidade de criar um novo sistema monetário internacional para reequilibrar os fluxos de capitais, produtos e serviços no mundo. No famoso "Acordo de Bretton Woods", os EUA se comprometiam a fixar o valor do dólar contra o ouro em USD 34 a onça e o dólar viraria moeda de reserva para todos os outros países do mundo. Em última instância, os EUA garantiam que qualquer um que tivesse dólares poderia trocar por ouro a uma taxa fixa de 34 dólares a onça. Nasceu ali o primeiro esboço do padrão "Fiduciário" de cambio internacional, que é o padrão existente até hoje. Além disto, conforme dito acima, foram criados o FMI e o Banco Mundial. Ao mesmo tempo em que romperam com o padrão ouro, os EUA emprestaram dinheiro (dólares, não ouro) para os países europeus se reconstruírem após a guerra. Exatamente por este motivo, dólares passaram a circular pelo mundo como moeda forte nessa época e se tornaram o grande padrão de referência entre as moedas do mundo. O rompimento efetivo com o Padrão ouro se deu em 1971, quando Nixon quebrou a conversibilidade dólar-ouro devido a crescente inflação americana e quando entramos efetivamente no modelo fiduciário puro, com o fim das moedas de reserva lastreadas em ouro.
No padrão fiduciário não existem mais as regras do padrão Ouro, o comércio pode ser feito em qualquer moeda e não existe mais a obrigatoriedade de se emitir moeda toda vez que se tem grandes superávits contra o resto do mundo. O que passou a valer é a livre flutuação das taxas de câmbio entre as diferentes moedas do mundo. O grande problema é que este sistema não gera necessariamente um equilíbrio no mercado internacional, como fazia o "padrão ouro" e beneficia os países superavitários, fazendo com que a riqueza das nações cada vez mais se acumule nestas economias.
Enquanto os EUA eram superavitários (até meados da década de 80) o poder de influência do FMI no sistema monetário internacional era razoavelmente grande, uma vez que os EUA são o maior cotista deste fundo. A partir de fins da década de 80 os EUA se tornaram uma grande máquina de produção de déficits comerciais crescentes, principalmente contra a China e outros países asiáticos, conforme mostram os gráficos ao fim deste parágrafo. Esses crescentes déficits vem sendo financiados através da emissão de dólares por parte dos EUA que não causam inflação interna, pois vão para fora dos EUA. O dólar é uma das poucas moedas que é aceita no mundo todo. Vários países, inclusive, acumulam reservas em dólares até hoje, considerando o dólar uma moeda de reserva como era o ouro.
Sem o poder de equilíbrio do padrão ouro e com o dólar sendo aceito como moeda de troca e de reserva no mundo todo nada impediu a escalada cada vez maior da emissão de dólares e dos déficits comerciais e no balanço de pagamentos dos EUA. A criação do EURO foi uma tentativa de acabar com esta "hegemonia" do dólar e em grande parte reduziu a demanda por dólares no resto do mundo e criou uma das bases explicativas da crise dos mercados financeiros e monetários que vimos em 2008/2009.
A China, por outro lado, é o grande superavitário dos dias atuais. Aproveitou a falta de regulamentação no mercado monetário internacional para manter a sua moeda realmente desvalorizada e acumular crescentes superávits no balanço de pagamentos, conforme mostra o diagrama abaixo.
As origens da chamada guerra cambial, portanto, estão na história do regime monetário internacional e na extrema complexidade em se desenvolver um sistema que efetivamente tenda a operar próximo de um nível "ótimo" de equilíbrio no mercado de câmbio e de capitais internacional, maximizando o comércio internacional e a riqueza das nações como um todo e reduzindo a volatilidade das taxas de câmbio no mundo. Este é um dos objetivos principais do FMI e a razão de sua criação. O grande problema é que o FMI nunca conseguiu de fato fazer este papel, que antes era desempenhado naturalmente pelas forças do mercado e dentro das regras do "Padrão Ouro".
Perspectivas
Para caminharmos em direção a uma solução equilibrada para o regime monetário internacional será necessário um intenso e profundo debate no mundo das ideias econômicas. Será necessário um verdadeiro "brain storm" entre os grandes pensadores econômicos, sociais, ambientais, jurídicos e políticos da atualidade, na busca de um novo padrão de funcionamento da economia mundial. Não existem aqui soluções simples ou já inventadas, trata-se mesmo da necessidade de elaboração e criação de um novo padrão de funcionamento para a economia mundial. O processo de criação nas ciências econômicas não é rápido, não é binário e exige um grande esforço político.
Não vejo a China como a grande vilã desta história. Acredito que a China tem se aproveitado de um sistema monetário internacional falho, criado durante o acordo de Bretton Woods, quando os EUA eram superavitários e, portanto, grandes beneficiários deste sistema de câmbio internacional que eles mesmos criaram. Sem dúvida o Yuan está desvalorizado e mantém o superávit comercial da China crescente, mas a China está simplesmente operando um sistema monetário internacional criado pelos próprios EUA. Além disto, o financiamento destes déficits crescentes dos EUA, através da emissão de dólares, tem criado uma enorme pressão sobre o próprio dólar contra as outras moedas do mundo, como o Euro e o Real por exemplo. Ou seja, no caso Brasileiro, a raíz do problema e do desequilíbrio pode estar no dólar mesmo e não no Yuan, uma vez que o Yuan é atrelado ao dólar e o dólar está caindo frente ao Real.
Hoje o FMI não tem o poder de influência que tinha no passado e não existe nenhuma norma internacional que obrigue os países a obedecer às regulamentações do fundo. Resta, portanto, ao FMI apenas estudar e sugerir mudanças nas taxas de câmbio no mundo, mas não existe hoje forma pela qual o FMI possa resolver este problema sem a reinvenção do sistema monetário internacional e a redefinição das participações de cada economia na riqueza das nações e no próprio FMI. Daí o aumento das cotas de participação de alguns países emergentes no fundo (decidido agora em 2010 e já previsto em outro artigo que escrevi em meados de outubro/2010). O FMI terá que ser reinventado, com crescente participação de todas as nações do globo em suas decisões e cotas.
A ideia de voltar para um regime parecido com o do padrão ouro parece tentadora, porém, este regime torna a política monetária endógena, ou seja, tira das mãos dos bancos centrais a possibilidade de controlar a oferta de moeda nas economias e, portanto, de praticar uma política monetária ativa para suavizar ciclos recessivos e maximizar ciclos de crescimento. Este seria um dos principais pontos contra uma volta ao padrão ouro.
Durante as reuniões em Bretton Woods, uma proposta alternativa àquela implementada no acordo, desenvolvida por John Maynard Keynes (líder da delegação inglesa durante o acordo de Bretton Woods), chama bastante atenção e pode trazer um pouco mais de luz sobre as perspectivas para a questão. Na proposta de Keynes, seria criada uma moeda internacional denominada "Bancor", representando uma certa quantidade de ouro, que deveria ser usada só por governos ou bancos centrais para efetivação das transações internacionais. Cada governo deveria fixar o valor de sua moeda em termos de unidades de Bancor. Seria permitida uma mudança, inferior ou igual a 5%, na paridade entre moeda nacional e a moeda internacional, quando o país apresentasse substanciais déficits no balanço de pagamentos por um período de dois anos. A União de Compensações Internacionais, que seria criada, emitiria o Bancor e seria onde os países superavitários depositariam Bancors e os deficitários tomariam empréstimos em Bancors. Haveria um limite de recursos que cada país poderia obter dessa instituição internacional e o país que excedesse esse limite seria punido. Para Keynes, o ajuste do sistema seria responsabilidade dos países credores, pois eles não poderiam acumular reservas internacionais. Eles teriam que emprestar suas reservas excedentes ou aumentar suas importações ou, ainda, aceitar discriminação contra suas exportações.
Apesar da proposta de Keynes não ter sido a escolhida durante as reuniões em Bretton Woods, ao ler Keynes somos automaticamente levados a pensar na possibilidade de criação de um banco central mundial e no início do processo de criação de uma moeda única global. Apesar de Keynes não ter dito isso claramente, sem dúvida ele deixou a sensação de que falava de algo neste sentido como solução para os desequilíbrios no mercado monetário internacional. Os EUA preferiram implementar o padrão ouro-dólar, por serem beneficiados diretamente por este padrão, mas parece-me que Keynes já estava pensando em uma solução mais equitativa e equilibrada no longo prazo.
O fato de que não estamos hoje em meio a uma grande crise, mas sim na fase de recuperação gradual de uma delas, não ajuda muito no sentido de urgência para que medidas tão profundas e radicais sejam efetivamente tomadas. Os governos de todo o mundo tendem a ter uma postura reativa às crises e não de tomar as medidas necessárias para que estas não ocorram. Ou seja, caso hoje estivéssemos vivendo uma crise financeira, como a que vivemos em 2008/2009, a probabilidade de avanços nesta área no curto prazo seriam maiores. O mais provável, no entanto, é que medidas e reformas deste tipo fiquem a espera da próxima grande crise que deve mesmo ser a crise resultante da chamada guerra cambial e/ou o recrudescimento da mesma crise que abalou os mercados em 2008 e cuja próxima fase tende a ser a do protecionismo cada vez mais forte por parte de todos os países do globo, inclusive os EUA, como forma desesperada de proteger as suas riquezas.
Conclusão
A luz de todo o processo e história da moeda no mundo que resumi neste artigo, vejo claramente que existem graves desequilíbrios cambiais no sistema monetário internacional e que a riqueza das nações desde "Bretton Woods" não tem fluído de forma sustentável e estável no mundo. Não adianta, na minha visão, achar um ou dois culpados nessa história. Não adianta pintar a China de vilã, pois isso só vai aumentar o protecionismo internacional, provavelmente agravando e tornando mais forte a guerra cambial. Será necessário um processo de reformulação e reinvenção do sistema monetário internacional que só é possível através da participação efetiva de todos os envolvidos, através da redistribuição das cotas dentro do FMI e da redefinição do papel do FMI. Um dos possíveis caminhos no longo prazo será a criação de um Banco Central Mundial, como único banco central com poder de emitir moeda de reserva para o mundo todo e mais a frente ainda a abertura dos complexos caminhos para a criação de uma moeda única no mundo. Possivelmente o sistema monetário internacional tenha que passar antes disto por uma fase intermediária, funcionando em um sistema parecido com o proposto por Keynes durante as reuniões de Bretton Woods e descrito acima, para só depois caminhar para uma verdadeira unificação monetária. Antes disto, no entanto, no curto prazo, as perspectivas parecem ser de um aumento no protecionismo de forma generalizada no mundo todo.
Referências:
1. John Kenneth Galbraith - Moeda: de Onde Veio, para onde foi
4. Macroeconomia – Rudiger Dornbush e Stanley Fisher
* Daniel Miraglia é economista formado pela Universidade de São Paulo, onde em 1994 ganhou o prêmio e Excellence Prize. Cursou especialização em finanças e private banking pela Euromoney Institute of Finance. Com mais de 17 anos de experiência, já atuou no Banespa S/A Corretora de Câmbios e Títulos, Lloyds TSB Bank, Banco Safra, O2 Filmes e Estúdios Mega. Atualmente é professor de finanças, economia de empresas e análise financeira de investimentos na BSP e consultor em cenários empresariais na Eyesonfuture